Páginas

segunda-feira, 29 de dezembro de 2008

Ano Novo

.
.

Jurara para si que as coisas daquele ano cheirariam a pão de padaria às 5 horas da manhã: novos. Que o fermento em seus pães não só os faria crescerem, mas também lhes daria um conteúdo místico de importância, além de uma camada crocante protegendo o miolo esbranquiçado. E seriam pães caros, lotados de inflação.
Levaria de si apenas o nome e os genes, que o condenavam àquela identidade, àquela aparência concretizada, de cimento, que só o tempo poderia lapidar. Lapidar. E sem dúvida o faria, sem piedade. Mas que era eterna no agora. Eterna! Porque além de achar grotesco driblar o tempo com o bisturi, mesmo que o quisesse, não teria finanças para tal. Seria outro ectoplasma trajando as mesmas vestes, jurou.
Sepultou em memórias seus tempos de escola, professores de relações estreitas, amigos duvidosos, ausência de liberdade para vagar entediado pelo prédio e por conseqüência a ditadura que o condicionara a permanecer sentado nas cadeiras de forro verde para assistir as tão desinteressantes aulinhas. Agora seria diferente, passara para outro nível, superior ao qual sobreviveu duramente e muito mais interessante.
Amaria como jamais, pondo-se em frente à arma quente do sofrimento. Escreveria versos felizes, que nunca antes escrevera, versos que em vez de apertarem sua bomba de sangue formariam um sorriso rasgado e sutil na face de quem se dispusesse a lê-los.
Sobretudo, exerceria alguma ação sobre o mundo. Levantaria de sua cova de homens vivos que passam sem respirar, que passam vãos pelo mundo, que atravessam a ponte sem que alguém os veja e morrem do outro lado. Daria alguma importância à sua existência... tão insignificante e egocêntrica, vivendo apenas para manter-se vivo.
No entanto viu-se ali, na ponta do precipício anual, tão igual ou pior que quando se jogou dos outros precipícios, do ano que sepultara ano passado. Não plantou uma árvore, não teve um filho, não escreveu um livro, uma carta de amor, não teve um grande amor, não ganhou um troféu, uma medalha, na loteria. Não construiu NADA! Não foi importante de fato para NINGUÉM! Não ajudou ninguém.
Era realista, não esperava tudo isso do novo ano. Esperava apenas uma forma de não passar no corredor escuro da existência andando silenciosamente com as pontas dos pés. E sabia, acima de qualquer outra coisa, que não seria o novo tempo que traria metafisicamente luzes que atuariam sobre as coisas, mudando-as. Sabia que somente ele, como todas as vezes, poderia agir sobre si, fazer algo por si, dar o grito de sua existência.
Reside nele a capacidade de dar o primeiro passo tímido em seu precipício novo.
E pensou:
Não adianta o ano ser novo, se a gente continua sendo velho. Afinal, que é o ano-novo senão um bom pretexto convencional para mudar?


(Lalo Oliveira)


Melhor Ego-novo a todos.
.
.
. .

6 comentários:

Anônimo disse...

"Não adianta o ano ser novo, se a gente continua sendo velho. Afinal, que é o ano-novo senão um bom pretexto convencional para mudar?" Raciocínio perfeito, digno de grande reflexão. Parabéns!

Unknown disse...

Assim como dito por M. Augusto, existem vários trechos dignos de muita reflexão...

"Não plantou uma árvore, não teve um filho, não escreveu um livro, uma carta de amor, não teve um grande amor, não ganhou um troféu, uma medalha, na loteria. Não construiu NADA! Não foi importante de fato para NINGUÉM! Não ajudou ninguém."

Muito sábias as suas palavras, Lalo. "Quiça eu a sombrear-me sob tamanha sapiência". Parabéns!

Quase freira, nunca santa... disse...

Ele realista mesmo assim jurava.
Ele insatisfeito, driblar o tempo queria, mudando tudo.
Formidável!

Anônimo disse...

Completamente perfeita a reflexão... Ano novo, vida nova, mas nós temos que mudar primeiramente... Parabéns Laloo

Ingrid B. Montenegro disse...

O mais engraçado de tudo é que eu estou ficando acostumada a gostar do que você escreve, Lalo. Li e lembrei de um poema de Drummond, Receita de ano novo, no qual ele diz:

"[...]Para ganhar um ano-novo que mereça este nome,
você, meu caro, tem de merecê-lo,
tem de fazê-lo de novo, eu sei que não é fácil,
mas tente, experimente, consciente.
É dentro de você que o Ano Novo
cochila e espera desde sempre."

e é isso mesmo, tua idéia, como já foi dito ai em cima é formidável; assim como a construção das palavras.

[ rod ] ® disse...

O ano só é novo mesmo se o fazemos novo... porque ele continua o mesmo sempre... mesma sequencia de meses e dias... mesmas datas festivas... mesma contagem de horas... o que diferencia é quem atua sobre ele, sobre este ano que para mim será diferente... mesmo que a outros a força do talvez tente me sucumbir.

Grande Abç meu caro e novamente um ótimo texto.

Feliz 2009 para todos nós.






Novo Dogma:
ceGo...


dogMas...
dos atos, fatos e mitos...

http://do-gmas.blogspot.com/