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terça-feira, 25 de novembro de 2008

Abacílio

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Abacílio

Abacílio sempre vivera ali, sentado naquele banco de madeira infiel da pequena praça do centro da cidade. Fizesse chuva ou sol, Abacílio estava lá.

O Velho que Trepava com a Estátua

No baricentro da praça uma estátua enfeitava o lugar. Tinha beleza estrondeante e um certo ar de erudição, como aquelas gregas ou romanas mutiladas.

Um gordo velho de poucos cabelos e muita barba, quase desdentado e com fundos de garrafa sustentados pelo pequeno nariz no centro da face circular, maltrapido e fétido, sem modos e vulgar estava sempre aos arredores daquela escultura de rocha tosca, quando não agarrado a ela. Dizia ser sua mulher. Não dizia, porém, que a amava. Amor é patético, ainda mais dizê-lo. E um homem daqueles, ora, jamais o diria.

Contudo, a grande pedra de bonita forma humanóide ostentava pelo sujeito uma espécie de sentimento próximo daquilo que os primitivos denominam amor. Sim, há apreço para tudo, infinitas formas de gostar e ser gostado. Ele, por exemplo, demonstrava através de bofetadas e grosserias, ainda que sua mão viesse a sangrar e vestir o monumento com um longo vermelho.

Fizera, outro dia, um orifício nas partes da infértil estátua... e não somente nas noites, mas também nas tardes de mais sol a copulava desavergonhosamente, ali mesmo, em frente às igrejas cristãs, à vista de qualquer um. Ao fazê-lo, não soltava uma só palavra de ar romântico, era rude e não pensava no prazer feminino. Ia quando queria, jamais mandava flores no dia seguinte. Era relacionamento moderno, ideológico... E ela, a estátua, gostava mesmo era daqueles beijos pedregosos, não dos molhados com a saliva dos sentimentos.

O Homem que Olhava o Próprio Umbigo

A poucos metros do excêntrico casal, repoltreado num banco amplo, à sombra de uma samambaia, encontrava-se um sujeito de papel importante no folclore daquela praça. Chamavam-lhe de Eu, uma vez que este era o único pronome que usava, de modo que atrapalhava o português com alguns verbos ao referirem-se a ele nos três tempos.

Em outros dias foi popular. Tinha o conhecimento de todos e pensava ter a amizade de também muitos devido à confiança que depositava e imaginava ter como retorno, achando ser o suficiente. Uma casa não se faz apenas do alicerce, mas também das paredes e do teto, é preciso construí-los com as próprias mãos, para que a casa seja firme e segura.

Hoje Eu vive com a esdrúxula mania de olhar apenas para o próprio umbigo, jamais desvia a atenção, seja para fazer o que for. Alimenta-se olhando para o umbigo, conversa olhando para o umbigo, transa olhando para o umbigo, ama olhando para o umbigo. Além disso, quando precisa desabafar ou dormir não muda a posição. Ainda que feche os olhos, ao abri-los é o umbigo que vê primeiro. E quando Eu chora, seu umbigo que é molhado pelas lágrimas secas.

Eu vive numa espécie de inércia de outros tempos, tem como amigo aquele estranho elemento da morfologia humana. Confia nele e basta.

As Meretrizes

As arestas eram sempre enfeitadas por mulheres de corpos muito bem distribuídos e faces milimetricamente corretas. Algumas até sabiam falar de coisas diversas e tinha bom gosto. Eram jovens, todas muito bem vestidas. Eram caras.

Homens e homens, dos mais belos e sábios, formavam filas que circundavam toda a praça para tentar aproximação das jovens hipnotizantes, como gente faminta com criança na fila do leite e do pão. Perdiam seu tempo.

Toda nobreza estética e luxúria daquelas moças eram apenas para os homens mais decrépitos, brutamontes trogloditas de cérebro primitivo. Não tinham culpa, coitadas... recebiam ordem maior de Dona Heidi, uma cafetina cega da alta sociedade.

Por que estavam naquela vida? Ora, sabem responder tanto quanto qualquer outra pessoa de vidas diferentes. Se gostavam ou não, não se sabe. Sabe-se apenas que embora passassem noites selvagens e quentes desprovidas de gentileza com seus senhores, vez por outra desfilavam pela cidade segurando placas e cartazes que gritavam frases como “Homens não prestam”.

As Freiras, Os Santos e Os Ladrões

Do outro lado da rua, as igrejas cristãs. Pedaços do céu no quase-inferno. Uma milenar, outra moderna. Nelas, mortais disfarçados de semideuses.

As senhoras – que da praça mais se pareciam com pingüins – eram sempre vistas andando de um lado para outro no interior da construção. Era possível vê-las por causa das grandes portas abertas, indiscretas, nas quais terminava o pátio trapeziforme com o lado maior voltado para o mundo, para que todas as coisas convergissem para Deus.

As meninas da praça achavam-nas patéticas, mas tinham certo respeito, embora duvidassem da castidade. Imaginavam que na primeira oportunidade que os pingüins tivessem, rasgariam o hábito e jogariam a auréola fora. “Nas torturas toda carne se trai”.

Elas, as freiras, no fundo de seus inconscientes mais obscuros, invejavam as meninas da praça. Sentiam-se culpadas e rezavam.

Também lá, na casa do Senhor, santos de batina enfeitavam o ambiente. Não os trepados nas paredes ou móveis, feitos de pedra como a estátua fria da praça, mas os que falam, que andam e que, por vezes, mostravam uma estranha elevação na batina, quando pensavam nas meretrizes. Achavam estranho que as crianças já não fossem à igreja.

No prédio vizinho, de arquitetura bem mais contemporânea, homens desciam trajados de terno de seus carros luxuosos, carregando pelas mãos suas loiras, que muito bem poderiam trabalhar na praça. Entravam no prédio, gritavam, pegavam suas percentagens e iam embora.

Certamente as coisas que ocorriam do lado oposto à praça bem poderiam não ser gerais, universais. Mas dali, daqueles bancos frágeis, debaixo dos tamarindos, daquele ângulo, era o que se via.


Abacílio

Abacílio sempre vivera ali, sentado naquele banco de madeira infiel da pequena praça do centro da cidade. Fizesse chuva ou sol, Abacílio estava lá. Parecia colado, que já nascera sentado, que fora esculpido como a estátua. Observava a tudo com olhos de interesse e amiúde preocupados. Tudo via, entendia e sofria. Sofria porque era besta, porque não era tão indiferente quanto o homem do umbigo, nem tão frio como a estátua, nem grotesco como o homem que a violentava. Abacílio sentia as dores de tudo, tamanha sua sensibilidade. Sensibilidade besta. Talvez a estátua estivesse certa: É preciso ser moderno. Mas Abacílio não era. Era daquele jeito besta.

Saudava a quem passasse por ele, e era ignorado. Acariciava os cabelos das crianças, e ficava sem jeito da forma que somente criança sabe deixar. Dava dinheiro a mendigos, e era xingado quando os mesmos voltavam bêbados. Todas as suas ações tinham reações inversas, exceto quando as próprias ações eram más. No fundo sabia que não poderia esperar que os outros fossem espelhos, que agissem da mesma forma que ele, que fossem da mesma forma. Os outros eram opacos. Não pensava que fossem o inferno, e sim uma espécie de paraíso desagradável.

Quem sabe não fosse ele o elemento estranho daquela velha praça, o inadaptado, o fraco? Em meio àquelas coisas – e a muitas outras –, sentia-se angustiado. Sentia que deveria ir embora.

Abacílio não condenava ninguém, cada qual como é, como pode, como quer. Mas Abacílio julgava, julgava sim, porque é tão natural quanto o choro. Como não poderia modificar as pessoas, restava-lhe modificar a si mesmo, adormecer-se.

Abacílio foi embora, dizem que não por muito tempo, apenas pelo tempo necessário para mudar seu exoesqueleto, como um artrópode asqueroso e incontente. Era um besouro. Não um besouro kafkiano, que já amanhece besouro, mas um besouro por vontade própria, de propósito. A estátua espalhava pela praça que ele a procurara com a intenção de saber o tipo de concreto que a compunha. Queria o mais seco e frio, que o tornasse indiferente às coisas, que o protegesse das dores bestas.

As coisas da praça aconteciam rotineiramente na ausência de Abacílio, como sempre aconteceram, independentemente dele. Voltou. Trouxe o próprio banco, já não sentava no de costume. Já não saudava, acariciava, dava dinheiro. Não ligava mais para nada: Tornou-se indiferente a tudo com suas vestes de cimento.

Tinha a certeza de que não duraria, que seria efêmero. Abacílio jamais conseguiria tornar-se indiferente e isento das dores. Aquele era seu jeito: besta. Logo voltaria a ser como antes, em breve passaria o efeito do placebo e tudo aconteceria como de praxe, inevitavelmente.

Mas Abacílio, embora frustrado, tinha a consciência tranqüila:

Tentara.



(Lalo Oliveira)

8 comentários:

Anônimo disse...

Eu, embarcando no contexto digo que não queria que Abacílio mudasse, pois não acho que o mesmo tenha que se modelar ou adaptar-se a forma como os demais agem, comportam-se ou expressam-se... Torna-se forte? Seria bom, desde que não tão forte a ponto de se igualar e adquirir a mesma rigidez e aspereza presente naqueles que o fizeram achar necessário o seu fortalecimento. Também não o considero um ser "besta", afinal, será que ter sensibilidade, saber expressar-se e sentir amor pelo próximo torna alguém "besta"? Se for, então digo que compartilho da mesma "bestialidade" do incompreendido Abacílio.

Ingrid B. Montenegro disse...

Sim, sim, eu gostei bastante. Princiaplmente porque a temática de todos os textos acaba sempre em um mesmo ponto: o modo de existir. Não sei qual o motivo de ter gotado mais do último, talvez pela mudança, pelo modo como a mudança aconteceu e por saber que somos, como Abacílio, e entramos em fase de muda, vez por outra. Enfim, mudanças chegam em momentos certos e, claro, independem da praça ou dos outros; mas, as vezes, elas devem saber quando o exoesqueleto do mês está pronto.

Tania Montandon disse...

Bom sou muito franca. Primeiro digo parabéns, tens um grande talento! Escrito com rigor gramatical, amplo e simples vocabulário, estória instigante, coerente e cativante.

Mas pelas minhas andanças ''bloguísticas'', acho que é o tipo de texto a ser publicado num lugar que te valorize e tbm à sua escrita. Quero dizer, não é um conteúdo de blog, é um nível de site, livro, não se menospreze. Embora, por esse país não se dê valor ao bom em quase lugar algum, ainda existe raras possibilidades. Vá à luta, jovem. Não jogue pérolas a porcos, jogue aos poucos.
Com esforço, aposto em ti como literato!

Grande abraço

ED CAVALCANTE disse...

A forma como você escreve dá a (errada) impressão de que a história tem um enredo surreal. Na verdade, adaptar-se ao mundo é um exercício comum, muito comum.

ED CAVALCANTE disse...

Voltei pra dizer que a figura do Abacílio é um paradigma da sociedade urbana. Muitas pessoas vivem perambulando por praças, bairros e até cidades buscando entender-se. A solidão é triste!

Lau Siqueira disse...

Muito bons os textos. Obrigado pelo convite. Um abraço!

Denise Machado disse...

Oi...
Já faz mais de ano que te leio.
Quero te ler por mais 70 anos, se meu corpo suportar.
Sabe como admiro suas letras e quanto a esta ultima postagem, uma palavra: perfeita.

Only feelings disse...

Ufa!
Longo mesmo viu, e muitíssimo bom!
Minha cabeça ainda está dando voltas... bom pra refletir
:*****