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quinta-feira, 2 de abril de 2009

Madá e a Lua

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Madalena havia feito todas as tarefas do dia, todos seus deveres de dona de casa: cozinhou, lavou, passou, fez toda a faxina. Além de suportar os sete filhos das mais divergentes idades. Foram quatorze, sete caixões brancos de anjo. Em intervalos mínimos entre uma gestação e outra, levou cerca de dez anos e meio grávida. Não era velha, porém. Casou-se muito cedo, como de costume na região e época.

Já estava tudo feito na casa, poderia sentar-se agora na calçada e falar asneiras com as vizinhas, poderia rir. Este era o seu lazer. O marido em seu cargo na pedreira, o mais óbvio: quebrar pedras. Era empregado indigente de uma empresa qualquer de construção civil. Quando ia para casa, levava sempre histórias de assombrações ocorridas para os sete filhos. Disse uma vez que acordara de madrugada e vira uma mulher trajada de branco balançando sua rede na pequena cabana onde dormia. Um dia no futuro a assombração seria pior: chegaria cego de um olho.
Madalena vestiu uma roupa mais adequada para sair à rua. Enquanto o sol se punha e a tarde era fria, sentou à penumbra de sua calçada estranhamente diagonal, como muitas daquela rua enladeirada. Depois vieram os já esperados companheiros de lazer. A conversa era boa e os distraía, os meninos brincavam no meio do mundo.

Tudo igual, tudo religiosamente igual. Exceto pelo trator que vinha descendo a ladeira feito homem embriagado, tropicando pelos metros. Não fossem os gritos dos espantados, todos teriam sido vítimas, mas apenas Madalena o foi. Teve a perna direita engolida pela lataria impiedosa. Sujou a rua de vida vermelha. Foi socorrida, silenciosa todo o tempo, apenas os filhos choravam num coro desesperado, seu marido saberia depois, quando chegasse fatigado do quebrar-pedras. E Madalena sonhava tranquilamente em sua inconsciência. Sonharia depois com o cozinhar, com o lavar, com o passar e acima de tudo com o essencial cuidar dos filhos, que logo seria avesso.

E o trator que não se sabe de onde veio, foi-se também não se sabe para onde. Liberto, como se fosse nada. Ficou por isso mesmo: um amasso por uma perna. A justiça era clara, e Madalena apenas uma dona de casa, mãe de filhos e mulher de quebrador de pedras. Fosse ela da alta classe, nem mesmo uma unha! A perna foi enterrada solitária, à espera do resto do corpo.

Mas Madá, como real mulher forte, ao longo do tempo superou suas dificuldades. Fazer o quê? Adaptou-se, acostumou-se a ter uma só perna. Talvez fingisse para si já ter nascido nesta condição. E de tão humilde, não teve sequer o desejo de fazer justiça, este eufemismo para vingança. Aprendeu a fazer tudo de novo, com todos os poréns. Aprendeu a pular no corredor verde da casa, apoiando-se nas paredes, da sala à cozinha e da cozinha à sala. Às vezes tombava. Os filhos cresceram, tornaram-se donos de si e de outros. Que alívio! Sete preocupações a menos. Contudo, jamais viveria somente com o marido cego de um olho. Quando não moravam na casa de um dos filhos, ocorria o contrário. Poderiam viver a sós, um tinha o olho que o outro ausentava, e este tinha a perna roubada de Madalena. Não era motivo, mas toda vida haveria outro alguém.

O tempo passou motorizado como um ônibus ou um trator desgovernado em ladeira, e de sua própria natureza assassino. E a perna esperava o corpo que já a esquecera àquela altura. Afinal, ela, congenitamente, tinha uma só.

Madá perdeu a perna, agora era desfavorecida de certa forma, mas este é apenas um ponto de vista infeliz. Ganhou uma compensação grande. Poderia sentir a influência do amor platônico dos poetas, da grande fonte da força que mexe as marés, do encanto dos enamorados, do consolo celeste de um homem após um dia de trabalho duro: da lua.

Quando as marés forem baixas e a lua crescente, Madá sentirá a lua em seu resto de perna. Quanta importância! Sentir a lua, ser abraçada... E logo ela, aquela pobre dona de casa, mãe de filhos e mulher de quebrador de pedras. Sentirá a lua em suas dores.

Madá, a maré do sertão.

(Lalo Oliveira)

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4 comentários:

Ana Karenina disse...

Belo, meu amigo.
Como muito pouco vi.

Muito orgulho de você.
Beijos.

Ingrid B. Montenegro disse...

esse eu já conhecia :)

Muito orgulho de você. [2]
:*

Only feelings disse...

=)

Já tinha lido, já tinha gostado, já tinha lhe dito, já tinha comentado, mas nem por isso, merece passar sem recado!

=*

Everaldo Ygor disse...

Olá...
Poeta e ainda Cronista dos Dias...
Uma entre muitas, mas aos olhos do poeta - a principal...
Muito Bom!
Saudações Poéticas!
Abraços
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