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segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

Um Cadáver no Microondas

O pessoal começou a chegar por volta das 21 ou 22 horas, não sei ao certo. Todos muitíssimo bem arrumados, perfumados, sorrindo e dizendo as duas palavras tão clichês, mas que nem mesmo por conta disso eram inválidas – e nunca serão, decerto. A mesa estava farta, linda, reluzindo cores tão saborosas que nossos olhos babavam somente de ver. Taças de cristal para os vinhos e para as champanhas, copos descartáveis de plástico para os refrigerantes, sobretudo para as crianças, estas pequenas pestes que parecem ter algo contra os cristais, pois quebram todos como que por acidente, quando no fundo, todos sabemos que há uma espécie de impulso nas crianças para a destruição. Estas pestes tão adoráveis.

Era o natal de 2010, uma sexta-feira na qual as luzes quase microscópicas nas varandas formavam um todo resplandecentemente azul, vermelho, verde, roxo, amarelo... E os parentes que há muito não se viam, ou que mesmo haviam se visto há pouco mas não muito falaram, buscavam saber uns das vidas dos outros e dos filhos dos outros e falavam de suas próprias vidas com certo pesar e lamento, mas sorrindo, como se fosse uma auto-ironia. “E as namoradas?” perguntava aquela tia velha, chata e indiscreta, constrangendo a um que, pobre coitado, estava mais encalhado que baleia em maré baixa. “Mas fulano está muito gordo”, dizia outra esquelética, sem peitos, sem bunda, sem nada, pois a carne que lhes caberiam concentrava-se toda na língua. “Aceita uísque?”, “Eu não bebo!” mas entendia de vinhos: “não, obrigado, não aprecio vinhos secos, apenas suaves”, “suaves? Quais são os suaves?”... Como oferecer o que não se conhece?

Para os que não tinham mesmo o que falar, ou simplesmente não queriam interagir muito, a TV estava ligada e passando show de uma cantora popzinha qualquer que nada tinha a ver com o natal, mas suas pernas eram bonitas, grandes e roliças, douradas, como um baguete de queijo e presunto.

Bla-bla-blás ditos, era chegada a hora da ceia, tão esperada e já fria. E a família reuniu-se ao redor da mesa para rezar, a metade já embriagada. E rezaram de forma muito estranha, aleatória, sem uma lógica no seguimento dos agradecimentos e tão pouco das súplicas. “Senhor Jesus, agradecemos por este dia” e outro dizia enquanto o primeiro ainda falava “Oh! Senhor Jesus!” e outro, ainda “Senhor Jesus, Oh!” e um dizia “Obrigado, Senhor Jesus!” enquanto outro “Senhor Jesus, Obrigado!”, tudo ao mesmo tempo de forma que dali a pouco porra alguma era entendida senão frases randômicas, loucas “Jesus Senhor Oh Obrigado” ou “Senhor Oh obrigado Jesus” ou “Obrigado Oh Jesus Senhor”... No fim, estavam apenas agradecendo de modo tão teatral que Jesus deve ter pago ingresso pra assistir.

Encerrado o espetáculo todos debruçaram-se sobre as comidas, enchendo seus pratos, colocando a farofa de bacon sobre o arroz com passas e a carne ao molho madeira sobre o salpicão, um pedaço de panetone de chocolate em meio às fatias do peito do peru – tão disputado. “Aceita Uísque?”, “eu não bebo”.

Depois da comilança o primeiro parente se foi, o segundo se foi, mais tarde o terceiro, até que por fim, quando não mais havia uísque, vinho seco, cervejas ou cachaça temperada, foi-se o último, ficando apenas os donos da casa, a bagunça, a sujeira e o cadáver na mesa, onde antes havia um peru vívido e reluzente.

Ficou ali a noite toda, à mercê dos micróbios que tornavam sua carne e seus ossos podres e que o faria feder em certo tempo. Somente pela manhã o pegaram e colocaram no microondas. Foi o almoço do dia seguinte, o jantar do dia seguinte, o almoço do dia seguinte ao dia seguinte e depois ainda jogaram-no novamente no forno, quando já era tempo de feder – e fedia.

Pobre ave, pobre cadáver, pobre alma sem descanso! Jesus já havia nascido, crescido, morrido e ressuscitado, mas o peru era alimento ainda desde o seu nascimento, usado e jogado no microondas uma, duas, quantas vezes fossem necessárias para encher os buchos daqueles humanos cruéis que não o dariam sossego jamais.

Um cadáver no microondas. Lápides nas cozinhas cristãs.

E sem epitáfios.

Um comentário:

Camila disse...

meu natal foi mais cristão que o seu, comi até damasco, comi até minha gula dizer basta... adorei o texto (Y)