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domingo, 25 de outubro de 2009

Lábios Roxos

Sei perfeitamente que aquela foi a derradeira vez que me deparei com a cena que tantas outras vezes causara-me um reboliço de tristeza em algum lugar dentro do tórax. Chovia ensurdecedoramente e o casal estava refugiado à frente de um edifício que não distingui, sob sua sacada. A moça de pele parda e trajando um vestido de algodão de cor natural e sapatilhas vermelhas enroscava-se com seu rapaz baixo e robusto e se acabavam num embaraço de lábios como se fossem deglutirem-se ali mesmo. Olhei para meu grosso casaco de lã e o odiei como jamais, pois somente ele esquentava-me naquela tarde glacial enquanto me traziam para morrer aqui, neste hospital que o plano de saúde paga meramente uma parte ridícula.

Não tive o dom de casar e ter filhos, sim, o dom, pois suportar uma esposa depois de muito tempo e vê-la envelhecer e juntamente com ela envelhecer a libido do marido e ter sempre que comer da mesma fruta e, além disso, ter paciência e suportar e ter que gostar e fazer sacrifícios obrigatoriamente por uma outra pessoa porque é de paternidade desta são perspectivas que nunca me encorajaram a querer esse tipo de coisa durante muito tempo e não são outra coisa senão um dom, porém agora que estou velho e solitário numa cama vagabunda de hospital esta vontade dilacera-me como um rato nas entranhas.

Foram meu sobrinhos que me trouxeram para cá juntamente com minha irmã primogênita, santas pessoas que desde sempre me ampararam feito um sujeito que cuida de seu cachorro levando-o comida nos fundos do quintal. Não quero com isso dizer que tivessem eles má vontade, não, não, pelo contrário; quero somente dizer que me vejo como um cachorro entocado nos fundos de um quintal; do quintal das relações interpessoais, dos afetos, dos amores consumados, dos prazeres, sobretudo.

Pois vou contar-lhe um pouco sobre mim enquanto a enfermeira põe-se a chamar o médico para a visita e então há a possibilidade que você entenda o porquê dessa minha tristeza já natural:

Nasci numa cidade pequena e sem graça, não tão antiga quanto sua sociedade. Fui o segundo filho dos meus pais, o do meio, aquele que nem recebe o desdém cedido ao primeiro tampouco a atenção ao último. Fui sempre muito tímido, tão tímido que cresci nas entrelinhas da minha própria história em vez de ser o protagonista dela, brincava sozinho num canto de rua enquanto os outros moleques divertiam-se comunitariamente com brincadeiras bestas de criança. Gostava de ficar olhando as nuvens e os jambos mordidos pelos morcegos e outros bichos quando subia no jambeiro, no topo, de modo a aumentar ainda mais minha antissociabilidade infantil, porém sentia-me bem, não era tímido com as nuvens ou jambos. Por vezes minha mãe gritava da janela ‘MENINO, VAI CORRER COM OS OUTROS!’ e eu acenava negativamente e nervoso com a cabeça enquanto meu irmão mais novo, tão enturmado, me olhava não sei se na esperança que eu fosse ou na dúvida de que eu iria.

Sempre vi a escola como uma espécie de purgatório, meu deus, como me agoniava aquela escola pequena de interior superpopularizada de crianças hiperativas! A interação era quase obrigatória, quase. Interagia o mínimo que me pediam, porém o máximo que eu conseguia. Acabava os desenhos, as pinturas, tudo muito rápido e a professora ingênua achava com isso que eu tinha uma habilidade além do comum, quando na verdade era somente ânsia e desespero de ir embora, achava que iria embora quando fizesse tudo o que me cabia. Engano.

Ao decorrer do tempo e das séries escolares fui habituando-me àquilo. Aliás, não me habituando, conformando-me! Até chegar ao ponto de resolver os deveres no mesmo tempo que os outros alunos. Sorte que a professora já não era a mesma do primário, caso contrário eu lhe seria uma boa decepção e ela preferiria que eu não tivesse crescido para que minha habilidade mantivesse-se.

Quando entrei para a universidade de um curso que não surpreendentemente não me obrigasse a lidar profissionalmente com gente de modo direto, mas que em vez disso me limitasse ao perímetro de um escritório no qual só as traças me fossem companhia era uma época de modernização social, as roupas diminuíam aos poucos, via-se as batatas da perna, os joelhos, os ombros das moças, os rapazes cada vez mais atordoados e a relação entre os gêneros que antes não existia tão definidamente – o que, penso, dificultou-me as coisas – tornava-se eufórica, os toques mais constantes, os passeios. Porém eu, um bicho do mato, via a tudo de longe sem me inserir nesse contexto tão agradável que me causava fobia.

Tive mais tarde que largar a faculdade por razões financeiras na família e arrumei um emprego que você pode achar estranho, mas que para mim era ideal, apesar do salário ser uma miséria. Trabalhei no cemitério Último Lar Terreno durante muito tempo, era agradável. Não, eu não era coveiro; para isso eu teria que lidar com todos os parentes do morto, vê-los com todo o blábláblá típico e, pior, ter que na frente de todos enterrar o maldito cadáver. Não, eu também não era motorista de carro funerário; aí eu teria que além de andar muito lentamente com aquela máquina motorizada barulhenta ter que ver uma fila apocalíptica de automóveis pelo retrovisor do veículo ou um aglomerado de urubus chorões seguindo-me como se eu fosse um santo, numa espécie de procissão. O que eu fazia lá era o mais tranqüilo que se poderia fazer: vigia noturno.
Treinei com meus mortos, bons amigos, minhas relações sociais muito bem e passei todas as noites conversando com eles sobre a vida, o inconveniente é que dessa vez não era eu o antissocial.

Chegou o tempo de aposentar-me, mas continuei trabalhando no cemitério, deixei-o apenas quando bandos de jovens esdrúxulos passaram a freqüentar os túmulos à noite, embriagados, drogados, cheios de energia e tesão.

Aposentei-me não faz muito tempo e desde então mal saía de casa até que minhas mazelas fisiológicas, minhas doenças, minhas complicações de velhice viessem à tona. A situação piorou tanto que minha irmã mais velha levou-me para sua casa a fim de que eu pudesse ficar à vista de outros seres humanos, para caso tivesse alguma complicação – e veja, tive! – pudessem ser tomadas as providências.

O doutor veio e me examinou, disse-me ‘tenha força, homem!’ e cochichou uma coisa qualquer com meu sobrinho que me olhou com olhar duvidoso, pegou um cigarro da carteira e saiu. A enfermeira, que poderia ser minha filha ou minha nora – seria utópico pensar que poderia ser minha esposa – aplicou-me uma injeção no braço dizendo ‘vai doer só um pouquinho!’ e em seguida apertou-o com um algodão nos dedos polegar, indicador e médio da mão direita de jeito que doeu mais que a própria injeção. Saiu. Minha irmã veio, sentou-se ao lado da cama e abriu um livro preto de páginas amarelecidas em uma página qualquer.

Contudo não é nada do que antes eu disse que quero realmente contar a você, em vez disso quero compartilhar minha agonia maior, a que por malditos anos acompanhou-me como uma sombra até mesmo no mais absoluto breu.

Acontece que desde sempre tive problemas com as mulheres e a este fato atribuo minha timidez que tanto me caracteriza quanto as digitais dos meus dedos velhos. Nunca eu soube como lidar com essas criaturas, pareceram-me sempre místicas e intocáveis, porém não por falta de vontade e sim por receio. Na infância muito dificilmente envolvi-me com outras mulheres senão minha mãe e minha irmã – esta que está ao meu lado e com a qual não fico até hoje completamente à vontade –, primeiro porque não fui uma criança muito sociável, depois porque naquela época era malquisto que meninos e meninas interagissem além do nível apropriado, não que não acontecesse, era somente preferível que meninas brincassem de bonecas e outras frescuras em seus quartos rosas com outras meninas enquanto os meninos corriam na rua com outros meninos e brigavam, caíam, rasgavam-se. Estive meio à parte disso vendo as nuvens e os jambos. Na adolescência, já na universidade, enquanto sonhava em ter um diploma que me garantisse ao menos um status melhorzinho nesta porra de sociedade, ainda interessei-me em algumas garotas, porém tremia-me inteiro quando se aproximavam de mim e se me tocavam então meus sentidos eram anulados e me recolhia para o mais profundo do meu interior. Eu tinha medo das mulheres como quem tem uma fobia. Ponho a culpa disto em minha inexperiência e timidez doentia. Depois de ter abandonado a instituição de ensino superior e me debruçado completamente em meu emprego noturno no cemitério perdi de vez o pouco contato que tinha com algumas mulheres. Restavam-me apenas as mortas, às quais muitas vezes pensava em abusar sexualmente enquanto estavam abandonadas na sala de velório, todavia nunca tive coragem suficiente de fazê-lo, além de ser regido por uma criação cristã miserável que me impedia não somente de fazer com as mortas o que há muito já deveria ter feito com as vivas como também de buscar alguma ‘profissional do sexo’, termo que acho um excelente eufemismo para referir-se às putas. Além da falta de coragem e da religião cristã uma outra variável também era desfavorável a tais atos, minha crença imbecil de que um dia encontraria alguém especial com quem poderia fazer imerso em amor as coisas normais da natureza humana relacionadas à libido.

Tenha em vista que fui sempre muito solitário, e não quero com isso que você pense que quero fazer algum drama, longe disso. Quero somente que veja o quanto fui imbecil e ridículo de abrir mão de tantas coisas por causa do medo e da timidez. A solidão sim foi minha puta gratuita para a qual eram dirigidas minhas masturbações frenéticas antecedentes a gozos insossos, sem graça.
Hoje sou um velho à beira da morte. Não é pessimismo, só não me deixo levar pela falsa esperança e verdadeira tapeação dos hospitalares, sei que não há saídas alternativas para minhas complicações de saúde. Sou um velho à beira da morte deprimido por nunca, nunca, em todo o meu tempo meus lábios não terem tocado outros lábios.

Nunca experimentei o amor e o sexo, mas o sexo é o que menos me deprime, pois posso virar-me sozinho enquanto a isso, porém não posso beijar a mim mesmo, e é por exato o beijo nunca realizado que me causa tanta tristura. Veja bem que o beijo é um encontro de almas, pois são duas cavidades interligadas, ao contrário do sexo que é, até onde eu sei em minha ingenuidade sexual de velho inexperiente, geralmente apenas uma cavidade na interligação.

E agora não tenho mais nada a fazer a não ser aceitar esta condição vergonhosa e lhe pedir que guarde esta história patética apenas para si. Agradeço-lhe a companhia e lhe confesso por fim que ainda tenho esperanças que depois da morte, quem sabe, enquanto eu repouse em um caixão barato uma borboleta vívida pouse em meus lábios roxos.

3 comentários:

Only feelings disse...

Nossa!
Realmente a timidez nos rouba momentos preciosos, este senhor por algum motivo, me fez lembrar do livro: Memórias de minhas putas tristes, pois é o oposto deste.
Muito boa estória, pode deixar que guardarei segredo.
:***

Anônimo disse...

um bom texto.

O narrador confidente ao leitor propicia construção imediata de uma intimidade e empatia com estória a ser contada. A escolha do perfil do personagem e a sua relação com o mundo constituiu talvez o mais difícil, uma vez que o protagonista tem como principal aspecto a nulidade frente a sociedade e ao sexo oposto, o que poderia tornar o conto maçante, já que o próprio personagem se formula como um tipo comum e sem expressividade. O autor, no entanto, mantém o interesse pela narração com o uso de metáforas e imagens que reafirmam o eixo principal do texto sem o tornar repetitivo.
Oliveira foi também muito feliz em conseguir finalizar o texto sem despontar uma lição moralista acerca da introversão (o que empobreceria o texto por demais), mas pelo contrário termina com o candenciado lamento do personagem e com uma metáfora que sintetiza os anseios de um homem frustrado.

um bom texto.

Sem nome disse...

nietzcheano!